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O SORRISO DO MESTRE
de Jan Val Ellam
Capítulo com o
Depoimento de Cléofas
O SORRISO DO MESTRE
de Jan Val Ellam
Capítulo com o
Depoimento de Cléofas
No outro dia, após ter se desculpado novamente com toda a família, encerrou-se em um mutismo ainda mais preocupante que o seu aparente sumiço. E assim, sucederam- se alguns dias. Mas ninguém atinou com coisa alguma. Aos nossos olhos, tudo pareceu normal, dias depois, quando ele e Maria foram tidos como casados. Posteriormente, nasceu uma linda criança que encantou a todos os familiares, como normalmente fazem os recém-chegados à Terra. Aos meus olhos, nada de especial. Simplesmente mais uma bela criança dentre as muitas que já vira. Para mim, o motivo de regozijo é que aquele era meu primeiro sobrinho. As atitudes estranhas de José e de Maria, entretanto, começaram a chamar a minha atenção.Viagens repentinas, em condições nada favoráveis; histórias contadas pela família de Maria quanto à excepcionalidade da origem daquele menino; autoridades que o haviam visitado quando do seu nascimento; tudo isso começou a fervilhar o meu pensamento, e a curiosidade foi o produto natural daquilo tudo. Mas José sempre desconversava a respeito. Passa-se o tempo, e coube a mim mesmo descobrir através da convivência com o meu sobrinho, que realmente era uma menino muito especial. E Ele, na sua postura de adolescente, adorava mesmo provocar com sutilezas de toda ordem, a minha já inadministrável curiosidade a seu respeito, com o que me respondia com o mais belo e ingênuo dos “sorrisos marotos” que já havia visto. Por motivos de viagem — havia me tornado um comerciante, aliás sem grande sucesso —, a cada vez que retornava, mais e mais surpresas o meu sobrinho mais velho me reservava. Por adorar escutar histórias sobre outras terras, povos e animais diferentes, ele sempre procurava ficar informado das minhas idas e vindas, o que terminou por nos aproximar. Mas suas “graças pessoais” eram tantas que cheguei mesmo ao ponto de trocar os presentes que trazia comigo das viagens por mais “surpresas”, já que estas eram encantadoras. Falava com uma “imaginação”— ao meu juízo — jamais vista antes.
Realizava alguns “truques estranhos” mas que, ao ser desafiado a repeti-lo simplesmente desconversava a respeito com o mais travesso dos sorrisos. Cheguei mesmo a levá-lo em algumas das minhas viagens, e percebia o encanto com que se defrontava com cada nova pessoa, animal, estrada ou paisagem. A partir de um certo momento, pela forma como ele encarava as pessoas com as quais se encontrava a primeira vez, passei mesmo a achar que o meu sobrinho era uma espécie de anjo que “percebia o que se passava no interior das pessoas.” Comigo mesmo, apesar dele disfarçar sempre que algo estranho ocorria, parecia saber o que às vezes eu pensava ou ia falar, já se adiantando com suas atitudes para me atender. Quando se percebia traído pelo fato de que “agira antes do momento propício”, procurava mesmo fazer crer que nada de estranho havia ocorrido. Fui me acostumando a conviver, mesmo que episodicamente, com o meu estranho e agradável sobrinho. Divertiame o fato de poucas pessoas saberem de certas faculdades que ele tinha. Perguntava-me até quando seria daquela maneira. Criou-se, com o tempo, uma relação de afinidade independente do grau de parentesco. Com a família já constituída, José e Maria procuravam educar a seus filhos dentro da tradição religiosa do nosso povo. Há, no entanto, um aspecto que devo ressaltar. Pela influência que José exercia, sem o querer, sobre mim, pude observar com toda propriedade a sua independência, vamos dizer, espiritual em relação ao império implacável dos costumes judeus. Havia muitas seitas e movimentos independentes no meio cultural do nosso povo. José não pertencia a nenhuma delas, o que já lhe valera alguns problemas. Seguindo seu exemplo, terminei também por jamais me filiar a nenhuma delas, apesar de todos os meus amigos, na sua maioria, pertencerem à seita dos zelotes, quando essa atitude foi uma Miolo espécie de moda nos tempos da minha juventude. Essa postura íntima de “independência espiritual”havia passado para quase toda a família. Jesus era o maior exemplo disso. Esse aspecto, desconhecido para muitos, foi muito importante para a formação dos meus sobrinhos e sobrinhas, pois, caso contrário, muito teria dificultado a formação de Jesus. Todos adoravam José. Era um dos poucos indivíduos, dos tempos em que vivi, que era estimado por quem dele se aproximasse. Jamais criava problemas, não era impulsivo apesar de conservar uma postura de calma e segurança que envolvia a todos. Discretamente alegre, jamais triste, sempre suave e atencioso, assim era o meu irmão e ídolo. Foi com profunda tristeza que o perdemos, quando do acidente que o vitimou. Para mim, é como se o meu padrão de referência para a vida tivesse simplesmente levado consigo a minha vontade de ir em frente. Com a sua morte, percebi quanto dependia dos meus encontros episódicos com ele, para viver em paz e com alegria, acreditando em um futuro, qualquer que fosse ele. Recordo-me que o já rapazote Jesus, abraçou-me durante o sepultamento, para dizer-me discretamente,“foi-se uma parte da minha alma, da tua e da minha mãe. Que o nosso Pai nos recomponha com o seu amor que a tudo alimenta.” Dias depois, ele foi comigo para a montagem de uma mobília, em localidade ali perto, que lhe havia sido encomendada, já que Jesus assumiu, com zelo e eficiência, o ofício do meu irmão. Durante o trajeto, enquanto observávamos a paisagem, disse como se estivesse pensando todo o tempo sobre o assunto: “ele está bem. Muito bem. Preocupemo-nos conosco. Ele está muito bem e mesmo feliz. Cumpriu a sua tarefa. Cumpramos a nossa.” Como já conhecia a sua capacidade de dissertar sobre o que bem entendesse, resolvi perguntar se ele sabia a sua tarefa na vida, como também a minha.
Dele escutei: “ainda estão por ser escritas. Depende sempre de cada um.”Perguntei- lhe, então: “Se assim é, por que dissestes que temos de cumprir a nossa tarefa, se ainda estão por ser escritas?” Olhou-me como se não esperando por aquela perquirição. “Da mesma forma que José cumpriu a dele. De nada sabia, ou pensava saber, mas agiu como se soubesse até o último instante de sua vida na Terra. Façamos o mesmo.” “Não entendi”, retruquei. Jesus permaneceu em silêncio, passando-me a sensação que refletia sobre a alternativa de continuar com aquela conversa, talvez refletindo se haveria condições de minha parte para entendê-lo. Mas isso eram só as minhas impressões. Quando tornou-me a olhar, seus olhos expressavam o carinho e a suavidade de sempre, apesar de poucos o entenderem, e ele sabia disso. “Não sei se conseguirei me explicar a contento”, disseme sorrindo como se tivesse lido meus pensamentos,“mas o que pretendo afirmar é que nascemos para este mundo esquecidos do que já somos, ou seja, filhos do Pai Celestial e portanto herdeiros de tudo o que pertence a esse Pai. Se somos todos seus filhos, e se Ele é eterno, somos portanto irmãos, sempre parceiros de um passado, companheiros de um presente e sócios de um futuro que, queiramos ou não, compreendamos ou não, haveremos de viver. Contudo, o que hoje estamos vivendo, sob certos aspectos incompreensíveis para os que vivem na Terra, foi arquitetado no passado, por outras expressões das nossos espíritos. Mas que também, no eterno fluxo do tempo presente, continua a ser continuamente arquitetado. Assim, sempre estaremos nos defrontando, seja no futuro longínquo ou imediato, com as nossas próprias criações, além daquelas produzidas pelos que conosco convivem.” “Antes de nascermos para este mundo, estabelecemos com os anjos do céu, algumas tarefas, algumas metas que pretendemos cumprir e atingir ao longo da vida. Mas se disso nos esquecemos, dos seus objetivos nos desobrigamos. Certo? Errado!
E nisso reside o problema de se viver na Terra, ou seja, o problema de todos nós.” “Nascemos com tarefas, das quais não nos lembramos, mas que, ainda assim, temos que cumpri-las, para o bem da nossa paz espiritual. Eis o aparente enigma, Cleofas, que tantos mestres estudam e tentam entender, que tantos doutores da lei sequer o valorizam e o homenageiam com a busca incessante do aprendizado. Mas algumas pessoas, mesmo sem jamais terem estudado ou refletido a fundo sobre esses temas, conseguem cumprir com as suas tarefas, e por isso são ricos no reino dos céus. José é um desses. E isso não acontece por obra do acaso, ou mesmo da sorte. É produzido por uma força íntima que foi arquitetada, no passado e no presente, o que produz os seus méritos e as suas conseqüências. Por isso o afirmo: se todos na Terra fossem de tal sorte aquinhoados pelos próprios méritos muito mais ainda faria o nosso Pai Eterno pelos que aqui vivem, já que Ele oferta as suas graças conforme a obra de cada um. E Ele sabe, como ninguém mais o faria, dar conforme o mérito de cada um, porque é a justiça em pessoa, a glória e a graça da vida em pessoa, o amor em pessoa. Mas isso ainda não se sabe nesta Terra.” “Lidando com temas que jamais compreendeu, nosso José, ó Cleofas, retirou de si mesmo a sabedoria dos mestres para que, vivendo como um simples e bondoso homem, operasse a sua volta a teia da vida, dando sustentação aos que dele se acercavam — e fez um gesto referindo-se a mim e a ele —, cumprindo com as tarefas que emanavam da sua alma, apesar de não o sabê-lo. Esforço-me por não sentir falta de meu pai, já que sei, ele está feliz. Mas gostaria que ele tivesse permanecido um pouco mais junto a mim. Havia tanto ainda para escutar dele, as suas histórias, a sua doce rebeldia contida nas entrelinhas de suas abordagens, a sua sinceridade refletida no cuidado de não ferir jamais, enfim, se mil vezes o meu Pai Eterno pudesse me dar um pai terreno, mil vezes gostaria de ser filho dele. Mas, paciência. Sei que é melhor ficar por lá, sem mesmo ter notícias de cá. Infelizmente, na Terra ainda não se produzem os bons frutos da mansuetude, da paz e da tolerância.” Desejava, de minha parte, que aquela pequena viagem não terminasse. E como se desejando prolongá-la, convidei para que parássemos próximo a um poço que já se avizinhava, para nos refrescarmos um pouco, com o que Jesus concordou. Não resisti, entretanto, a perguntar-lhe: “Sabes algo da tua tarefa? E da minha?” Tornou a sorrir e disse:“Da tua, posso até imaginar que sei um pouco, pois está escrito na tua alma, e os anjos do céu de vez em quando costumam ler em voz alta e eu os escuto. Mas somente poder-te-ia ajudar sem nada revelar-te pois feriria as leis do esquecimento devido ao que vai nossa alma. Deves tu, procurar, ao longo da vida, a função que te cabe junto aos que te rodeiam e ao mundo em que viveis. Devo eu, da mesma forma, procurar na minha vida a função que me cabe exercer, em benefício dos que me rodeiam e do mundo em que agora estou. Pena que não possas escutar os anjos que lêem a minha alma”, concluiu ainda sorridente. “Mas, por que esses anjos que te acompanham não lêem em voz alta para que possas escutar a leitura que mais te interessa, que é a da tua própria alma?”, tornei a retrucar. “Como já te disse, isso iria contrariar as leis do esquecimento devido a quem nasce na Terra. No meu caso, devo eu mesmo aquinhoar condições para que possa ler sozinho as páginas do destino que arquitetei, com as tarefas que me cabem cumprir. Os anjos que assessoram o nosso Pai no concerto da vida aqui e alhures, ajudam-nos sempre conforme a capacidade que tenhamos criado para bem compreender e atuar na vida.” “Onde aprendestes a escutar a voz dos anjos?”, perguntei já temeroso de estar ultrapassando algum limite onde ele gostaria de encerrar aquela conversa. “Não o saberia dizer. Mas seguramente não foi aqui na Terra. Escuto-os falando a respeito de um “reino celestial de paz e concórdia", onde o amor é a postura natural de todos os cidadãos desse reino.
Escuto também que da forma como Miolo estou me preparando, devo constatar em plena vida na Terra que já vivi nesse reino dos céus. Deve ter sido de lá que o meu espírito trouxe essa capacidade. O que achas?”, perguntou surpreendendo-me profundamente, já que não esperava por aquela pergunta. Até porque, quem sempre perguntava era eu. Achei mesmo que ele estava usando aquele subterfúgio para descansar, um pouco que fosse, já que eu não havia lhe dado tréguas. “Ora, o que posso achar se não que deve existir alguma coisa para explicar as muitas capacidades que tu tens que ninguém mais as tem?”, respondi em um misto de pergunta e desespero mental, o que deveria ter sido uma resposta. Mas cada um dá o que tem, pensei comigo mesmo. “Existe mesmo esse tal reino?”, voltei a perguntar. Balançando afirmativamente a cabeça ele nada disse, enquanto se refrescava junto ao poço. “Como podes ter certeza?” “Na Terra não se pode ter certeza de muita coisa. Não é um mundo que propicie condições para que o Pai se demonstre, a não ser através da sua própria obra, ou da presença de alguns emissários que aqui vêem falar a seu respeito. Acho que sou um desses. Por isso nasci, como sabes, por isso escuto, vejo e converso com os anjos, por isso tenho as tais capacidades as quais te referistes, mas nada disso me faz melhor ou superior a ninguém. O que sou devo sê-lo como cada um é o que é. Sem desfigurar a sua realidade espiritual. Basta já viver na Terra para que a realidade do mundo desfigure um pouco a origem celeste de todos nós. Desconfio, ó Cleofas, que somos todos eternos, só que meio esquecidos de tudo o mais, o que me parece benéfico, já que na Terra a vida assumiu um papel que não lhe é próprio, mas sim, porque a nossa vida presente foi erroneamente arquitetada em um passado complicado, difícil de conversarmos sobre ele, já que diferente de tudo o que hoje conhecemos.” “Em mundos assim, onde não se pode ter certeza de muita coisa, existe a fé para nos guiar durante a vida.
Ainda assim, tudo pode ser percebido conforme a ótica da fé ou da percepção de cada um. Como cada um tem o seu nível de fé e de percepção conforme os méritos das obras realizadas no passado e no presente ... Por isso devemos ter bom ânimo sempre, e isso aprendi com José.” “Vamos Cleofas, pois não adianta atinarmos com as tarefas celestes se não cumprirmos as da vida terrena. Adiantemo-nos para cumprir com o horário.” E assim fomos, em mais uma das rápidas e inesquecíveis viagens que eu fazia com o meu sobrinho que naquele época contava 19 anos. Se sob os meus auspícios Jesus fez algumas poucas viagens, sob os de José de Arimatéia seria bastante diferente. Aconselhado por ele, Jesus resolveu se ausentar por intervalos de tempo maiores, já que precisava buscar as suas respostas e construir os seus painéis de mundo que a sua postura singular requeria. Assim, por alguns anos, suportamos todos com dificuldade a sua ausência, já que outras terras e outros povos é que estavam tendo a graça de recebê-lo. Tantas histórias que ocorreram durante o tempo em que esteve ausente que se contadas surpreenderia muito mais a todos que delas soubessem, até porque tudo o que Jesus fez tinha algo de diferente, de misterioso. Realmente, para quem convivia mais de perto, ele parecia ter vindo mesmo de um outro reino que não o da natureza terrena. Mas as outras pessoas nada percebiam. Achavam mesmo que certas histórias, produzidas pelas inevitáveis conversas indevidas que alguns familiares de José e Maria tiveram com outros acerca do estranho nascimento e de diversas ocorrências não menos estranhas que sempre cercaram Jesus, era tudo produto de exageros e de intrigas maledicentes. Mas era bom que assim fosse pois pelo menos ele podia sossegar. Ainda não havia chegado a sua hora, como ele sempre afirmava, mas nós nada entendíamos. Finalmente ele havia retornado. Foi com imensa alegria que abracei-o quando de seu retorno definitivo.
De outra vez que ele retornara somente para passar algum tempo com os seus, antes de retomar as suas viagens, não me encontrava presente pois estava realizando a minha maior viagem por aqueles dias. Como era bom tê-lo de volta.Todos estavam radiantes. Fizeram-no mesmo “jurar” — no que ele conseguiu negociar e transformou em uma simples promessa — que demoraria bastante tempo antes de decidir por mais uma daquelas aventuras. Quando assim falavam, apesar de continuar sorrindo, notava-se um certo aspecto no seu olhar que escondia muitos mistérios. Mas ele não os revelava, pelo menos não os revelou aos seus até que fosse chegada a sua hora. Assim passou-se o tempo. Uma certa manhã, Maria procurou-me algo aflita. Concitava- me a demover Jesus da sua intenção de se ausentar por mais um outro período. Sua mãe estava aflita, pois conhecia como ninguém os talentos espirituais do seu filho, já que por aquela época, os zelotes — grupo de judeus que pregavam a luta armada contra a opressão romana — estavam promovendo muitos saques para angariar recursos na defesa dos seus ideais de libertação. E o pior é que eles já começavam a se enfurecer com os compatriotas judeus que não lhes davam algum tipo de ajuda, começando mesmo a chamar de traidor a quem não lhes apoiasse a intenção de lutar. Mais complicado ainda era o fato de que alguns bandidos, sem nenhuma causa em vista a não ser o exercício do próprio banditismo, estavam praticando seus roubos e se fazendo passar por zelotes, o que tornava qualquer deslocamento um evento de risco. Daí a preocupação de Maria. Mas apesar do seu cuidado para não ferir ninguém, em especial a sua mãe e amiga, ninguém conseguia demovê-lo de coisa alguma, eu muito menos. Encantava-me como Jesus e sua mãe conversavam como se fossem amigos, apesar de Maria pouco compreender, naquele tempo, muito do que ele dizia, o que por sinal, também ocorria comigo. Só que com Maria ele conversava muito mais, o que era uma característica diferente dos filhos daquela época.
Realmente existia um sentimento singular entre eles. Mas nem isso era suficiente para modificar a sua posição já tomada de “caminhar por aí e ver um pouco mais o mundo e as pessoas criadas pelo Pai.” Que me perdoe o sentimento feminino, mas às vezes, para resolver certos problemas gerados pelo receio maternal, somente uma idéia que nada tenha de genial logra conseguir. Ofereci-me para acompanhá-lo, como se em caso de ataque de bandidos pudesse fazer alguma coisa. Para minha surpresa e a de Jesus, ela aceitou sem maiores problemas. Resolvemos partir antes que ela pudesse mudar de idéia. Nessa oportunidade, fomos caminhando, sem maiores compromissos, o que nos permitiu mais liberdade. Segundo o que julguei ter entendido, ele queria encontrar- se com algumas pessoas com as quais jamais havia estado antes, mas que, segundo me havia afirmado, já os conhecia — o que para mim era um mistério. Quanto mais o questionava a respeito do que íamos fazer, mais ele repetia sorridente que era melhor assistir sem se envolver, ver sem compreender, e depois, se possível fosse, ele tentaria me explicar — o que me deixava mais curioso ainda. Certa feita, devido a minha insistência, disse-me que todos nós éramos anjos, só que vivendo na Terra. Quando morríamos, continuávamos anjos, só que vivendo em outras moradas. E se daquelas moradas saíssemos, onde se encontravam os nossos mortos, para outras moradas iríamos já que todo anjo era herdeiro de tudo o que havia sido criado pelo Pai e pelos anjos que representavam o seu poder e o seu amor pelo firmamento afora. Pelo menos foi isso que julguei entender. Jesus chamava, nas nossas conversas, a qualquer ser que não estivesse vivendo na Terra normalmente como sendo um anjo e às vezes, em alguns casos de pessoas que já haviam morrido, como sendo um espírito. Disse mais: “os anjos que nos acompanham enquanto vivemos na Terra, são amigos celestiais e espirituais que nos ajudam, quando possível, e quando lhes é permitido e conveniente ao curso do destino e das tarefas de cada um.
No meu caso, aprendi a ler os registros da minha própria alma — isso o disse abrindo um sorriso discreto como se brincasse comigo em relação a uma conversa que havíamos tido alguns anos antes —, e com a ajuda deles, sei que nasceram também para este mundo, outros que me pretendem ajudar na presente tarefa. Devo procurá-los e avaliar como estão, lendo nas suas almas, com a ajuda daqueles anjos que falam alto — sorriu novamente — para vislumbrar as possíveis tarefas que nos esperam.Tu mesmo és um desses, ó Cleofas. Só que parte de tua tarefa, pelo menos no que concerne a nossa convivência já a cumpristes. Outra parte te espera mais tarde, quando provavelmente eu já não mais puder estar junto aos meus familiares.” Pensei que ele se referia às constantes viagens que teria que fazer e mais tarde, quando parasse com as minhas próprias, deveria cuidar dos mais novos. Foi melhor ter pensado isso do que qualquer outra coisa, já que não havia nenhum pesar no que Jesus falava. Começamos a nos encontrar com uma série de grupos de pessoas para as quais Jesus discretamente olhava muitas vezes sem ser percebido. Em outras, como se existisse algum tipo de energia no ar, as pessoas que eram foco de sua atenção, ficavam como que procurando algo em volta, e algumas delas chegavam mesmo a encará-lo durante algum tempo, mas depois continuavam a sua busca sem localizar na sua pessoa motivo especial para deter mais ainda a atenção. Ele sempre sorria quando alguma das pessoas observadas demonstrava de alguma maneira que haviam percebido “algo no ar”. Judas Iscariotes foi um desses. Certa tarde, uma pequena delegação dos jovens candidatos a se tornarem doutores da lei, do Sinédrio, resolveu parar durante algum tempo em uma estalagem onde nos encontrávamos já no final de uma refeição. Somente estavam no recinto os cinco homens da delegação e mais eu e Jesus, além dos proprietários.
Ao perceberem que todos eram judeus, começaram a falar sem maiores preocupações dos sonhos de liberdade que acalentavam. Um deles, mais exaltado, quase já bradando em altos berros, reclamava da passividade do seu povo e em especial da hesitação criminosa de alguns membros do Sinédrio que, a seu juízo, pareciam estar de alguma forma corrompidos pelo poder romano, já que nada faziam no sentido de buscar a liberdade. Quanto mais falava, mais se exaltava reclamando dos outros e, em especial de Judas, que nos anciãos aquele comportamento era até aceitável mas, entre eles, a omissão era tão criminosa quanto a própria conivência com a opressão romana. E lá seguia com as suas idéias enquanto os demais sequer conseguiam falar pois o exaltado zelote não deixava. De onde estávamos, Jesus escutava, até porque não havia como evitar, e olhava para cada um deles até que a sua atenção fixou-se em Judas. Este, olhava com um ar algo enfadonho as exaltadas posições do companheiro, tentando até falar uma vez ou outra, mas não conseguia. Parecendo ter desistido, começa a olhar para um canto qualquer, enquanto Jesus o observava. Repentinamente voltou-se na nossa direção, olhou-me de forma rápida detendo em seguida o seu olhar fixamente em Jesus. Foram alguns segundos em que permaneci na expectativa crescente de ver como aquilo ia terminar. O companheiro exaltado de Judas, percebendo a sua desatenção para consigo, procurou perceber o que ele estava olhando com tanta intensidade. Calou-se durante algum tempo mas, repentinamente, perguntou a Jesus:“somos teus conhecidos?”, ao que Jesus retrucou “sim, somos reconhecidamente irmãos na herança de Abraão, de Isaac e Jacó. Além disso, já os vi pregar algumas vezes nas sinagogas, o que muito me estimulou o espírito.” Não sabia se o meu sobrinho havia criado aquela história naquele instante — com os seus estranhos poderes — ou se realmente já os havia visto antes. Surpreso e cheio de orgulho por alguém já tê-lo escutado antes e de se recordar de algo por ele dito, o exaltado zelote exclamou: “Realmente a frase que acabastes de dizer é de meu costume dizê-la sempre que me é possível. É a maior verdade que nos une, concordas?” Judas não deixou Jesus responder. Perguntou-lhe como se desconfiando de algo: “já me vistes pregar?”. “Não, tu nunca pregastes...”, Judas olha com espanto para Jesus enquanto este, com um sorriso que de há muito eu já conhecia, completou “pelo menos que eu tenha visto”. Depois de um silêncio algo inquieto todos sorriram, apesar de Judas continuar a olhar de forma fixa para Jesus, pois percebera claramente que ele deixou entender que conhecia o fato de Judas não ter feito ainda nenhuma pregação, além das normais do culto iniciático da religião judaica. Levantando-se, Jesus saudou-os, no que o imitei, enquanto o mais exaltado entre eles insistia para que ficássemos um pouco mais, o que não pudemos aceitar, já que assim o meu sobrinho havia decidido. Apesar disso, mesmo quase já à altura da saída, Judas pergunta a Jesus: “acreditas que há de vir um messias ou isso pertence somente aos sonhos dos profetas?” “Por que me perguntas?”, retrucou Jesus. “Não o saberia dizer... Quem sois?” Sorrindo Jesus lhe disse “alguém que também como tu, procura e espera. Se ele algum dia vier e contigo te encontrar cuida para que não seja do jeito que queres. Muitos já fizeram o que gostarias que ele viesse a fazer. E o mundo ainda está como está. De minha parte, espero que ele seja como tem que ser porque se assim não for, será mais um a ser o que todos sempre quiseram, e o mundo continuará como sempre foi, com guerras, sofrimento e opressão.” Pairava uma estranha atmosfera no ar daquele local enquanto os dois se observavam e conversavam. “Se fostes tu o messias...., não, não..., como esperas que o messias atue neste mundo?”, perguntou o exaltado zelote. “Qual o sentimento que pode existir entre um pai e um filho?”, perguntou por sua vez Jesus: “.... que queres tu dizer?” “Se o messias for alguém que venha para ordenar o mundo na harmonia das leis que regem a organização de todas coisas, talvez ele sinta por todos os seres humanos o que um pai sente pelo seu filho. Neste caso, o que ele fará entre os homens, se não semear o amor?” “És um poeta.”, afirmou Judas. Espero que jamais encontres o messias para que ele não te escute, pois tendes a arte da palavra e da imaginação. És daqueles que tornam as palavras perigosas, mais poderosas até que as armas.Mas sois um poeta. Mais fácil para ti será morrer do que matar, pois não te inquietas facilmente. E neste mundo, quem não se inquieta não mata, morre. Muitos assim estão se portando no nosso povo. Pelo menos teremos mortos bem comportados”, disse Judas de maneira sarcástica. “Pelo menos teremos mortos dignos, ó Judas.”, disse Jesus. Todos riram e mais uma vez Jesus e eu tentamos sair, quando Judas pergunta:“como sabes meu nome?” Olhei assustado para o meu sobrinho que, novamente com o velho sorriso na face, disse simplesmente que havia escutado quando um dentre eles o chamou pelo nome. E enquanto se entreolhavam como se estivessem tentando se recordar quem havia dentre eles chamado Judas pelo nome, conseguimos sair antes que novamente voltassem a interpelar Jesus. Somente anos mais tarde é que eles tornariam a se encontrar, quando Jesus o convida para ser um dos apóstolos. Enquanto caminhávamos, referi-me ao exaltado zelote, elogiando os seus ideais de liberdade, apesar de achar sua postura algo temerosa. Jesus me escutava atentamente, balançando a sua cabeça ao final de minhas palavras, como se concordando comigo. Disse apenas que faltava estratégia e sobrava imprudência na postura do rapaz. Comentou que o outro, Judas, era um estrategista nato, apesar de também imprudente, pois facilmente cedia às provocações. Por aqueles dias, ainda não havia entendido com clareza que a intenção de Jesus era a de observar algumas dezenas de “anjos”que haviam nascido na Terra para ajudá-lo na sua missão, mesmo tendo ele já me deixado entender quanto a isso. Como de nada sabia, ficava ás vezes tentando atinar com o que ele achava de tão interessante assim em observar aquelas pessoas. De minha parte, sabia-o tão inteligente que somente uma razão muito especial faria com que estivéssemos andando há vários dias, sem um destino aparente, encontrando-se “casualmente” com aquelas pessoas. Em outra oportunidade, um fato singular aconteceu. Tínhamos acabado de chegar a uma vila quando Jesus percebeu um pequeno grupo com cerca de quinze pessoas, formado por homens, mulheres e crianças, que se encontravam em torno de um rapaz, de idade aproximada a de Jesus, que de pé, falava com entonação que prendia a atenção dos que ali estavam. Aproximamo-nos enquanto o rapaz continuava a falar. “... não somos daqueles que podemos nos permitir viver de qualquer maneira. Se assim fosse, que mérito teríamos aos olhos de Deus já que por Ele fomos escolhidos para dignificar a vida neste mundo. Não que sejamos melhores ou diferentes dos outros povos. Mas devemos ser mais exigentes conosco próprios para que o mundo ao nosso redor seja melhor." "Não sei se terei a graça de um dia Deus se dirigir a mim, para me ensinar a viver como Ele quer. Não sei se nas Sagradas Escrituras a sua vontade está muito clara, pois se assim fosse, o nosso povo não estaria vivendo da maneira que está: espalhado, desesperado, oprimido, dividido e sem esperança. Ou então não estamos entendendo o que os patriarcas e os profetas nos ensinaram.” “Se somos daqueles de quem se espera que entre nós surja o messias, o que estamos fazendo para recebê-lo? O que de diferente temos para que alguém tão especial surja no nosso meio? Se nada melhorarmos na prática da Lei dos Profetas melhor seria que ele não viesse, já que não encontrará guarida nos nossos corações. Ou será que estamos esperando que o messias venha e faça coisas menores que os profetas fizeram? E os profetas quase sempre criticaram os reis do nosso povo, e por eles foram punidos, já que não calavam a verdade que lhes ia na voz inspirada por Deus. Se assim foi, deverá ser o messias que esperamos um profeta ou um rei?” Dizendo isso, o jovem pregador saudou aos que lhe escutavam com uma leve inclinação de cabeça e começou a caminhar lentamente. Quando passou próximo a Jesus, olhou-o com simpatia como se fosse dizer alguma coisa. Mas nada disse. Jesus respeitosamente inclinou a cabeça enquanto o olhava com carinho. Nada disseram um para o outro. Cada um continuou o seu caminho. Depois perguntei a Jesus quem era aquele rapaz, ao que Jesus respondeu: “Um outro trabalhador enviado pelo Pai. Mas não posso convidá-lo a seguir-me. Ele já tem o seu próprio caminho.” “Assim o dizes porque ele já é um pregador?”, indaguei. “Não, não necessariamente. Assim o digo porque ele já acendeu a luz do seu próprio espírito. Já caminha iluminando os seus passos com a luz que lhe é própria. Assim fazendo, mantendo a sua luz pessoal acesa, ajuda aos que ainda necessitam da luz alheia para iluminar as estradas da vida.” “Ainda te encontrareis com ele?”, ousei perguntar. “Não pretendo. Não lhe poderia ajudar. Acho que não terei muito tempo. O que devo fazer, fá-lo-ei conforme as circunstâncias dos momentos. Mas não o posso saber até quando as circunstâncias permitirão que a obra do meu Pai seja erigida. Não posso atrair para perto de mim todos os trabalhadores do meu Pai sob pena de pôr em risco tudo o que foi planejado pelo Alto, além da vida deles próprios. Quando chegar a minha hora, se não for possível fazer frutificá- la como pretendo, talvez o veneno deste mundo me asfixie e devo então daqui retirar-me, não porque o queira, mas por força do desejo de muitos que, apesar de necessitados de luz, são cegos por pura ignorância, e dessa maneira desejam permanecer. Se esta hora chegar, outros que já reflitam no amor do meu Pai que estiverem perto de mim, poderão também ter que partir, o que não desejo. É necessário que o trabalho seja continuamente desenvolvido neste mundo e assim alguns devem ficar. Para isso, muitos aqui estão e muitos para este mundo terão que voltar, enquanto trevas houver.” “Vamos, Cleofas. Precisamos envolver com a nossa atenção todos os trabalhadores inscritos para esta hora.” Depois que deixei o mundo terreno é que percebi com uma certa surpresa, que Jesus havia observado, ao tempo das nossas caminhadas, todos aqueles espíritos que haviam encarnado com o compromisso de ajudá-lo — mais de uma centena. O porquê dEle ter escolhido exatamente os doze que foram os seus apóstolos, é questão que jamais foi explicada. Ao que hoje posso deduzir, decorridos dois milênios terrestres daqueles dias inesquecíveis, é que poderiam ter sido outros em vez daqueles. Sei apenas que dependeu exclusivamente da sua escolha pessoal. Quem sabe se um dia ele próprio não explique ou autorize a um dos doze para assim o fazê-lo? Outro aspecto que somente também pude perceber nos ambientes espirituais onde me encontro, é que eu mesmo, naqueles dias, fui observado intensamente pelo meu sobrinho, sem contudo atinar até o momento presente, quais eram os seus objetivos para comigo. Por ser da família, pensei estar apenas acompanhando-o na sua tarefa, no que acho que me enganei, já que nada fiz para ajudá-lo. Quando retornávamos para as nossas casas, estranhamente Jesus começa a me fazer uma série de perguntas sobre as quais a muito custo conseguia responder alguma coisa. Essa “nova etapa” da nossa convivência começou quando, após ter me crivado de perguntas sobre as minhas opiniões a respeito de assuntos religiosos, ele me perguntou: “o que sentes voltando para casa?” “Não seria o mesmo que tu sentes?”, retruquei. Ele sorriu e disse “provavelmente não.” Olhando para o sol a pino comentou “sei que a nossa casa é o universo. Mas da maneira como se conversa na Terra, com o que daqui se pode perceber, costuma-se pensar que esta é a nossa morada natural, que o local onde se vive em família é a nossa casa. Que seja. E isso é evidentemente correto.Mas não consigo sentir dessa forma. Desde a minha adolescência, Cleofas, que tenho dificuldade de me sentir em casa, vivendo na Terra. Se fosse te contar o que sinto e o que hoje sei a meu respeito, com a tua condescendência com que sempre me tens privilegiado, achar-me-ias, em boa hipótese, um louco.” “E em uma hipótese não tão generosa assim?”, perguntei- lhe sorridente. “Não sei. Sinceramente não sei. Como também não sei o que se pensará a meu respeito quando retornar para o meu mundo, para o reino que me foi delegado pelo Pai.” Ao escutar aquilo, fiquei com um sorriso suspenso na face pois pensei que ele estava brincando. Mas ao fixar a atenção na entonação da sua voz quando falou sobre aquela questão de ser uma espécie de rei de um outro mundo, uma sensação ao mesmo tempo estranha e maravilhosa dominou-me todo o corpo. Continuei observando-o com a discrição que me era possível naquele instante, e ao perceber que ele continuava sério, pois que ele normalmente sorria sempre que se referia a qualquer daqueles assuntos estranhos — mas que para ele eram normais —, tomei consciência de que alguma coisa nova estava em curso. “Que história de reino é essa, Jesus? Estás falando sério?” “O que pensas, Cleofas, a respeito do que até hoje tenho te demonstrado, mesmo com parcimônia, sobre o que posso fazer?” “Não sei. Já me habituei a estimá-lo independente de tudo o mais, que parei de achar estranho o que eventualmente fazes de incomum, mesmo com a tua discrição. Em ti, acostumei-me a achar tudo natural.Talvez se fosse em outra pessoa...., mas em ti, acho que não me surpreende mais, seja lá o vieres a fazer. Contudo, sinceramente, não saberia dizer "o que penso sobre esses fatos que te cercam?” “Não sei exatamente como será o meu futuro, Cleofas. Apenas intuo que será complexo na exata proporção da incapacidade das pessoas que vivem na Terra em entender o que estou prestes a fazer. Neste mundo, ó Cleofas, a expressão “rei” serve para simbolizar uma posição que não se ajusta a minha situação no mundo do qual te falei. Mas, ao mesmo tempo, é a que mais se aproxima ao teu entendimento. De fato eu o sou, ó Cleofas, e para lá voltarei após cumprir aquilo a que me propus quando lá estava.” “Vim para este mundo porque o quis. Ao mesmo tempo, procuro atender a uma necessidade do amor do nosso Pai Celestial em ajudar a todos os seus filhos. Por isto aqui estou. Mas, da forma que se fala na Terra, esta não é a minha morada, a minha casa. Como também alguns há, por aqui, que não são deste mundo. E se somos filhos do Pai, e se Ele tem muitas moradas, podemos estar em qualquer uma delas, desde que possamos ou precisemos.” “De onde eu vim, muitos podem fazer o que faço e o que ainda terei que fazer, pelo bem da compreensão humana ante o poder de quem me enviou. Lá, todos podem muito, se comparados com o que fazem os homens da Terra. Entretanto, nada há de tudo o que é feito que não tenha como base a postura do amor fraterno, da compreensão e da tolerância, pois se o que podemos fazer com o ato da nossa vontade somente o fazemos porque unidos à do nosso Pai que sustenta o céu e tudo o que mais existe. Por mim mesmo nada sou, porque o que sou é o Pai que é em mim, já que somos um só. E cada filho ou filha, cada anjo ou espírito pode ser um só com o Pai, desde que assim se queira, desde que se aprenda a amar com maturidade moral e sentimental. Nisso reside o mistério da existência.” “Vim para ensinar e testemunhar o que ora te afirmo, ó Cleofas. Entendes o que te falo?” “Acho que sim”, respondi. Mas não sabia se tinha realmente entendido, o que ele percebeu com facilidade. “Queres ver um anjo, ou um espírito, ó Cleofas?”, perguntou Jesus com um dos seus já conhecidos sorrisos. Assustei-me com a indagação e em um arroubo de sinceridade disse-lhe “não”. Continuando a sorrir, disse-me que por mais que o quisesse não o seria possível por obra de minha vontade. Esclarecendo- me, explicou que somente alguns anjos e pouquíssimos espíritos sob certas condições podiam tal fazer, se o desejassem, e se houvesse motivo maior para isso. Voltou a perguntar:“gostarias que algum anjo desejasse aparecer diante dos teus olhos?” “Não”, tornei a responder.“Aonde queres chegar?”, perguntei- lhe. “Aqui está um anjo que veio do céu, diante do teus olhos, e com tudo o que já fiz e que pudestes observar, ainda assim pensas ser mais fácil achar-me um homem estranho ou mesmo diferente, a pretender-me um anjo celestial que resolveu aparecer pelo maior dos motivos: o amor que sinto por todos os que vivem neste mundo. Pois sou, ó amado Cleofas, um anjo que desceu do céu a pedido do Pai, para apascentar as ovelhas deste aprisco. Assim o falo porque o Pai e eu somos um só. Eis no que sou diferente de ti, já que sei quem sou e quem és, e tu não sabes quem és e nem me podes compreender.” “Mas não te deixes turvar o raciocínio, ó Cleofas, sois ainda um dos bons deste mundo, pelo que muito gosto de ti, apesar de não me poderes compreender. E não te surpreendas se te dissesse que, se bom não foras, ainda assim te amaria como te amo, já que somos irmãos, independente de tudo o mais. Sem falar — e o disse com um sorriso franco na face — que sois o meu tio preferido.” Foram dias inesquecíveis, pelo menos para mim. Até a atualidade, decorrido tanto tempo terrestre, sinto as recordações daqueles dias como se fizessem parte de um eterno presente a preencher a minha alegria de existir. Hoje o sei, como é uma graça celestial aquela que tive por poder conviver com ele. Retornamos para os afazeres cotidianos, já que o sustento material era a tônica das minhas preocupações. E assim, sem maiores avisos de que vivia em uma época excepcional na história da humanidade, este espírito que hoje vos oferta as suas recordações, mesmo tendo estado tão perto dele, não percebeu o que estava ainda por vir. O máximo que imaginava é que ele se tornaria um grande doutor da lei, um rabi, ou mesmo um grande profeta, mas jamais imaginei os fatos que viriam a ocorrer. Movido pelas circunstâncias do seu destino, Ele afastouse de todos nós, os seus familiares, apesar de que dois dos seus irmãos sempre procuravam estar com ele, além de alguns outros parentes. Não sei se por isso e pelos afazeres do dia a dia, não me impressionava quando escutava notícias a respeito de seus “feitos estranhos e maravilhosos”, até porque os conhecia muito bem. Quando escutava a respeito de milagres e realizações estupendas, pensava ser produto do inevitável exagero da tendência humana a desfigurar qualquer coisa, por qualquer motivo. Assim, pouco acompanhei o desenrolar dos acontecimentos. Maria, de vez em quando me chamava, preocupada que estava com a direção que, a seu juízo, os fatos estavam tomando. Acostumado, entretanto, a escutar as suas eternas preocupações, comuns às mães de todos os tempos, procurava desconversar, até mesmo porque nada podia fazer. Sabia como ninguém que nada existia que servisse de obstáculo a Jesus, se assim fosse o seu desejo. Divertia-me mesmo quando ela insistia — tentando convencer-me a procurá- lo — que a “minha presença ao lado do seu filho havia sido fundamental”para que tudo tivesse corrido bem na viagem que fizemos, o que me provocava ataques de riso incontido. De minha parte, não o procurava com receio de incomodar- lhe, como também por conta dos meus afazeres. A meu juízo, tudo estava caminhando conforme o esperado, sem maiores altercações de curso. Foi dessa maneira, que retornando apressadamente de uma das viagens que sempre fazia com a intenção de passar a Páscoa com os familiares, que fui surpreendido com a notícia de que Jesus havia sido crucificado, no que não acreditei. Preocupei-me por ter sido informado que até a sua mãe já sabia e tinha se dirigido para o palco dos acontecimentos. Procurei e não encontrei nenhum dos familiares mais próximos de Jesus. Uma sensação indescritível de opressão dominou- me completamente. Para minha desdita, ao chegar em Jerusalém fui logo informado dos fatos. Envelheci em poucos instantes o que toda uma vida não ousara fazer. Nunca mais fui o mesmo quando aproximei-me, já pelo fim da tarde, do grupo que estava ao redor das cruzes onde a ignorância de uns poucos havia produzido o infortúnio de toda uma geração de espíritos. Incompetente para continuar a viver, nada conseguia dizer e nem mesmo compreender o que meus olhos observavam. Ali estava o meu sobrinho, tratado como um criminoso, ele, justamente ele que amava a todos neste mundo. Perdi a voz e o tirocínio por muito tempo. Nem mesmo a notícia da sua ressurreição me provocou maiores ânimos, até mesmo porque não acreditei em nada do que se falava a respeito daquilo tudo. Isolei-me por completo. Já que não podia domar a minha dor e sabendo Maria acompanhada de muitos, de forma egoísta resolvi me esconder do mundo. Não me sentia mais vinculado a nada, muito menos ao mundo que agora me parecia um palco de horrores. Passado uns vinte dias do assassinato do meu sobrinho, estava sentado próximo a um poço, procurando beber um pouca da água que havia de lá retirado, muito mais pelo hábito do que propriamente por estar com sede. Fazia tempo que certas necessidades comuns ao dia a dia da vida na Terra “assustavam-me”, já que surgiam de repente, ante a minha razão, sem que delas tivesse a devida noção de realmente estar precisando. Por puro instinto de sobrevivência atendia ao que me era possível atender, sem contudo nada procurar. Assim, no meu andar sem rumo, havia encontrado um poço e por isso estava ali bebendo. Foi com uma certa surpresa que percebi, também me assustando um pouco, um homem que julguei conhecer sentado um pouco mais adiante, solitário, tomando também um pouco de água. Até mesmo aborreci-me porque sinceramente não queria me encontrar com ninguém. Por isso, apressei o atendimento da minha sede inexistente para sair dali o mais rápido possível. Não queria conversa de nenhum tipo. E assim fiz. Na minha pressa por razão nenhuma, terminei, por pura atitude desajeitada, derramando ao léu o conteúdo da minha vasilha. Escutei um discreto sorriso que julguei conhecer, e voltei a atenção para a única pessoa, além de mim mesmo, que estava ali sentada há alguns poucos passos. Como o homem estava com o rosto coberto pela mãos que estavam próximas à boca, não atinei com quem era. Indeciso, sem saber se simplesmente ia embora ou se somente para cumprir com a lógica dos fatos, retirava um pouco mais da água para beber, já que claramente não o havia conseguido fazer antes, permaneci alguns instantes em indecisão, o que novamente ensejou um discreto sorriso no homem que estranhamente permanecia no local. Resolvi beber ao mesmo tempo que o encarava. Ao terminar, comecei a caminhar com certa pressa na direção em que o homem se encontrava, única maneira de sair do local onde me encontrava. Ao passar na sua frente, ele levantou-se e perguntou “se podia me acompanhar já que não era daquelas terras e desejava se dirigir até um outro local”, o que me forçou a perguntar para onde ele desejava ir. “Procuro por aqueles que seguiam a um homem que dizia não ser deste mundo, pois que desejava encontrá-los.” Disse-lhe que estava me dirigindo para um local onde supunha ser ali próximo uma das casas onde costumavam se reunir. Pelo menos lá ele poderia ser melhor informado. Enquanto caminhávamos, olhava de soslaio para aquele estrangeiro que, aos meus olhos, parecia-se bastante com o meu sobrinho apesar de que a barba, a voz, e a altura um pouco mais avantajada, além de uma certa aparente lentidão nos movimentos, o diferenciavam por completo — pelo menos assim achei. Observava-o enquanto caminhávamos, e a tal “aparente lentidão” dos seus movimentos, que a meu juízo deveria deixá-lo um pouco mais para trás, já que eu estava caminhando apressado, apenas me causava estranheza pois que ele permanecia ao meu lado sem maiores esforços. Mais adiante, passei a achar que o meu companheiro estava se divertindo com tudo aquilo. Sem maiores avisos perguntou-me: “Desejarias que um anjo te aparecesse?” “Não”, respondi-lhe abruptamente levado por um estranho impulso que me surgiu de forma repentina. Eu mesmo estranhei a resposta dada, recordando-me, entretanto, de uma pergunta semelhante que Jesus me havia feito anos atrás. “E se algum anjo tivesse um motivo real, valioso, que fizesse com que ele desejasse aparecer aqueles a quem ama, achas tu que, neste caso, seria conveniente que ele aparecesse mesmo que não o quisessem ver?” Passei a olhá-lo com o cenho franzido, já que daquele estrangeiro começava a ser emanado um perfume que jamais sentira, mas nada conseguia responder. “Como imaginas tu, caro amigo, se um anjo desejasse aparecer neste mundo, que ele caminharia entre os homens? Como deveria ele saudá-los se não com a melhor de suas vestes e o melhor dos perfumes que o sentimento do amor produz, assim como a flor oferta a quem dela se aproxima o que de melhor tem?” Parando subitamente, voltei-me para ele perguntando: “Conheces o meu sobrinho, ó estrangeiro .... És um anjo que ele enviou para aplacar a dor que a sua ausência me provoca? É por isso que andas dessa maneira...?” Escutei aquele sorriso, apesar da voz algo diferente — um pouco mais grave — e o meu “entendimento” finalmente percebeu que ele estava ali, na minha frente, sorrindo, da mesma maneira travessa e amorosa com que sempre me sorrira durante os momentos em que convivemos. É como se estivesse cego durante alguns instantes e repentinamente a visão se abrisse; é como se o discernimento estivesse entorpecido por alguma espécie de dormência e sem maiores avisos um acordar súbito tivesse lugar. Foi assim que me senti. Cai de joelhos, não porque o quisesse saudar dessa forma, mas simplesmente porque não me sustentei em pé. Sorrindo, ele se desculpou por não poder me ajudar a levantar,“já que os anjos não podiam interferir — e já era o velho sorriso franco na face inesquecível — nos fatos do mundo mas somente visitar e observar. Para interferir, dizia ele, tinham que nascer como os homens o faziam. Entendes agora , ó Cleofas, o que sempre quis te dizer?” Balancei afirmativamente a cabeça já que a voz — além de outras tantas coisas — me faltava por completo. Disse-me mais: “agora devo deixar-te na esperança que mais um pouco e te levantarás e continuarás a seguir com o teu destino. Lembra-te Cleofas que o futuro está sempre por ser construído, e o construiremos juntos. Do mundo que te falei, estarei trabalhando para que esse futuro nos permita a continuação da convivência que tanto nos acalentou a vida neste mundo em que estás. É imperioso que, enquanto estiveres neste mundo, desenvolvas os teus melhores esforços para que no futuro possamos levar adiante o desejo comum de descortinar o firmamento e as estradas das muitas moradas que o nosso pai nos legou. Não era este o nosso maior sonho ó Cleofas? Não foi este o tema sobre o que mais conversamos?” Tornei a balançar a cabeça de maneira a concordar com as suas palavras. Com extremo esforço, consegui perguntar: “e José, ó Jesus, e o meu irmão José, como ele está?” “Muito bem. Recebeu-me como filho querido e já está daqui cuidando de Maria e dos nossos afetos comuns. Não o verás, mas saibas que ele estará sempre com vocês, como também eu estarei com todos já que assim o desejo e o deseja o nosso Pai. Pertencemos agora, ó Cleofas, a um só sonho, a um só projeto de felicidade, a um só desafio: o de esclarecer a todos quanto à existência do nosso Pai, quanto à postura amorosa que todos temos que ter, e quanto ao futuro que todos podemos ter, desde que para isso contribuamos como a flor contribui para a harmonia do mundo com a sua beleza e o seu perfume.” “Mais um pouco e retornarei para aquele mundo do qual te falei. Mais um pouco, e outros me seguirão. Mas quando a saudade, como a sentimos na Terra, for uma constante em muitos dos corações deste mundo, aqui retornarei já que assim o desejo. Contudo, sei que só a saudade de uns poucos clamarão pelo reencontro; só a necessidade e o desespero de muitos haverão de rogar a minha volta, e assim o farei, quando for da vontade do nosso Pai, que mede as saudades, as necessidades e os desesperos, e dispõe quanto a justiça do seu reino de amor e de paz.” “Firma-te em ti mesmo, ó Cleofas, já que sempre assim o fizeste. Mas não esqueças de cuidar da parte divina que há em ti, como existe em todo homem e em toda mulher. Faças isto em minha memória, e eu honrarei a saudade que é nossa, até que se alternem os caminhos das muitas moradas da casa do nosso Pai, e aqui retornarei, quando os tempos forem chegados. "Foi com a minha parte divina na condição humana da qual me investi, que semeei o meu amor entre os homens. Agora retorno ao Pai. E será com o estado divino que me é natural, já que assim deseja o Pai, que aqui retornarei para ativar em todos que se permitirem, o que está adormecido nos que vivem na Terra: a herança dos atributos do Pai Celestial. Por isso que te disse, ó Cleofas, “cuida da parte divina que há em ti”. E chegará um tempo em que todos os trabalhadores do Pai repetirão e testemunharão para todos os cidadãos deste mundo esta proposta redentora: a de que somos todos herdeiros, parceiros e obreiros de um mesmo destino que nos foi presenteado pelo amor do Pai.” E assim, o meu amado sobrinho e mestre se desvaneceu no ar. Após alguns instantes, levantei-me como que movido por uma força estranha, já que assim preferi supor, até mesmo porque ele havia dito sorrindo que os anjos só interferem neste mundo quando aqui se fazem homens. Procurei Maria e os demais para contar-lhes do ocorrido quando, para minha surpresa, escutei outras tantas aparições que ele havia feito, e continuou a fazer até que despedindo- se de todos, retirou-se do panorama terreno. Suas palavras e o seu sorriso ainda estão hoje, na minha mente espiritual, a repercutir como a melhor das recordações, a melhor das saudades. E como ele mesmo disse, nos tempo futuros — e eis que estão chegados, o afirmamos — muitos tentam despertar a humanidade para o zelo cuidadoso da parte divina que há em cada ser humano. Cuidemos, pois, cada um de nós, da herança que o Pai Celestial nos legou, com o cuidado e o amor que este tipo de legado requer. Afinal, o tempo de saudade já se esvai, e é chegada a hora do reencontro. E novamente, com o sorriso que sempre caracterizou a sua expressão humana entre nós, ele a este mundo virá, para cumprir a promessa ditada pela amorosa saudade que o seu amor construiu para os que vivem na Terra. É o depoimento que vos posso ofertar e o faço com a melhor das intenções. É chegado o tempo em que estas notícias devem ser dadas a quem delas quiser se servir. Estimo, pois, que a alguém possa interessar.
Cléofas,
da Pátria Espiritual
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